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Notável «retábulo fingido» de cerâmica policromada, constituído por nada menos de 1384 azulejos, este conjunto azulejar de características monumentais procede da Capela de Nossa Senhora da Vidana extinta igreja de Santo André de Lisboa, fundada pelo nobre Bartolomeu Vaz de Lemos, que aí jazeu em campa armoriada datada de 1580.

Disposto em andares sobrepostos, como se de retábulo marcenaria lavrada se tratasse, o retábulo de Nossa Senhora da Vida inclui, acima do entablamento simulado, as cenas figuradas do Anjo São Gabriel e da Virgem da Anunciação, em edículas incluem, ao centro, a cena da Adoração dos Pastores, e nos laterais, em nichos fingidos e intercolúnios, as figuras de São João Evangelista e de São Lucas. Trata-se de uma das obras da azulejaria portuguesa da segunda metade do século XVI onde melhor se sente o processo de adequação da linguagem plástica aos valores estéticos do Maneirismo internacional. O conjunto sugere a estrutura da uma máquina de marcenaria retabular com colunas de capitéis coríntios, frisos de grotesco, bases com pontas-de-diamante e remates de ramagem na cornija, como que integrando pinturas de cavalete nas suas edículas – numa solução cenográfica bem portuguesa, igualmente experimentada nos «frescos» maneiristas alentejanos, onde abundam os testemunhos de «retábulos fingidos» (as obras do pintor eborense José de Escobar, por exemplo).
O ceramista desenha com soltura e compõe as suas cenas dentro do espírito antoclássico da maneira «reformas», com colorido aberto a tonalidades luminosas (efeitos de verdes-malaquite, azuis e amarelos-dourados), um desenho «caprichoso» das figuras de linhas serpenteadas e das poses teatrakizantes, e ritmos de composição atentos a um elaborado impacto cenográfico, com evidentes cedências às orientações catequizadoras tridentinas dominantes, e revelando bom conhecimento dos processos figurativos da pintura de óleo de cavalete. Trata-se de produção Lisboeta, bastante diversa, no estilo e na técnica, do grosso da cerâmica sevilhana da Bacalhôa. A hipótese de se tratar de obra do ceramista lisboeta Marçal de Matos, carecendo de contraprova documental irrefutável, é todavia de reter como possibilidade: este mestre – acaso parente do azulejador Francisco de Matos que assina o revestimento cerâmico de uma das capelas de S. Roque (1584), e de um novo artista de nome Miguel de Matos (activo em 1613-14 na Irmandade de S. Lucas, talvez seu filho?? – é citado num processo de denúncia do Santo Ofício envolvendo o mestre flamengo de louça vidrada Filipe de Góis, e tinha loja e forno abertos na chamada Prais da Boa Vista, aí tendo executado, em 1575, um «retábulo fingindo» de azulejo para o arco da Capela de Nossa Senhora da Conceição, no convento do Carmo em Lisboa, obra infelizmente desaparecida. A circunstância de dever tratar de obra marcada por idêntico recurso à decoração cenográfica permite ilacções sobre a sua especialidade. De resto, um lambril de azulejo com grotesco flamengo, de cerca de 1565, que existe na Casa do Lago do Palácio da Bacalhôa, está assinado (MA)TOS, o que deixa analisar alguns paralelos estilísticos com o retábulo de Nossa Senhora da Vida. O fato de Marçal de Matos aparecer ainda citado, em 1576, numa obra lisboeta (o retábulo da capela do nobre Matias de Noronha), aí associado ao entalhador flamengo Estácio Matias e ao pintor João Francisco, permite extrair novas ilações sobre o seu meio de trabalho e sobre os contatos com os praticantes de talha lavrada e com os círculos de difusão de gravados ornamentais ítalo-flamengos.
Independentemente de ser Marçal de Matos o seu autor, o retábulo de Nossa Senhora da Vida atesta um elaborado conhecimento das influências de estampas maneiristas nórdicas, designadamente de Martin de Vos e de Cornelis Cort, cujos modelos inspiram algumas das cenas representadas nas edículas, e bem assim dos tratados de grotescos muito difundidos desde Antuérpia, onde se inspirou para o lavor dos frisos com ornato vegetal, e das bases com figuras de Leão alternando com pontas-de-diamante.
A fortuna histórica do retábulo conta-se em poucas palavras, á míngua de documentação mais precisa: destruído o templo de Santo André em 1845, dado que o terremoto de 1755 o tornara irreparável, o conjunto cerâmico passou por diversas vicissitudes, designadamente um gorado processo de venda para coleção inglesa; alguns anos após a demolição do templo-mãe, o Ministério de Obras Públicas, através dos esforços de José Valentim. teve o bom senso de fazer remontar (em 1861) o conjunto cerâmico num corredor da Biblioteca Nacional de Lisboa, instalada então no extinto convento de São Francisco da Cidade; mais de um século volvido, em 1969, o Museu Nacional de Arte Antiga decidiu que fosse transferido para o Museu Nacional do Azulejo, na Madre de Deus, onde desde então esteve exposto como obra-prima da azulejaria quinhentista portuguesa, ainda que sem a montagem dos dois andares, devido às suas excepcionais dimensões; após a Europália/91, em Bruxelas, onde a obra se expôs com grandioso destaque e evidenciando sucesso, o Diretor do Museu Nacional do Azulejo, João Castel-Branco Pereira, e o arquiteto João Bento de Almeida repensaram a sua montagem museológica em termos de uma mais eficaz reconstituição da obra, tal como se encontrava primitivamente na capela dos Vaz de Lemos em Santo André, criando-se para um efeito um espaço no Museu do Azulejo que permite a sua instalação integral.
Em termos de fortuna crítica, enfim, é Frei Agostinho de Santa Maria, no seu Santuário Mariano, quem pela primeira vez descreve com louvor a capela dos Vaz de Lemos em Santo André, elogiando o seu «azulejo antigo, mas de excelente qualidade», e no mesmo sentido se expressam depois o Padre Carvalho da Costa na Corographia Portuguesa e, já após a sua transferência para São Francisco da Cidade, Ribeiro Guimarães.

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