Maria, elevada ao ápice da graça
Introdução
Em 8 de dezembro de 1854, Pio IX (então no 8º ano de um pontificado que duraria quase 32 anos) definiu o dogma da Imaculada Conceição, depois da mais longa e grave controvérsia que já dilacerou a Igreja. Mais de seis séculos antes, São Bernardo, ainda que tão maravilhado com Maria, repreendeu asperamente ao venerável Capítulo dos cônegos de Lyon, Diocese Primazial, pela adoção da festa da Conceição, vinda do Oriente, na medida em que era estranha à fé e à Tradição. Os grandes doutores da Idade Média ficaram desconfiados ou contrariados diante desse mistério. Todos, até Duns Scotus (morto em 1308, com 42 anos), que ousou reagir, no final do século XIII, mas sem chegar a dizer: o pecado original não a tocou. Afinal, se o tivesse afirmado, teria sido condenado pela Sorbonne.
Scotus não afirmou a concepção imaculada de Maria e limitou-se a estabelecer que: 1. Deus podia fazê-lo; 2. era oportuno. Mas não ousou acrescentar: Ele o fez.
A solução genial de Scotus
Por que, então, Duns Scotus é considerado o doutor da Imaculada Conceição? Por motivos muito válidos. Esse teólogo genial, depois de ter escrito uma obra imensa, teve a prudência de evitar a condenação e ao mesmo tempo a inteligência de renovar a problemática.
Seu papel foi decisivo, pois virou de ponta-cabeça a objeção maior que parecia proibir essa doutrina. Segundo o Evangelho e a Tradição já mais que milenar, Cristo é o Redentor de todos. Se Maria é isenta do pecado original, a nova Eva não foi resgatada, e Ele não é mais o Redentor universal. Essa exceção seria um atentado ao dogma fundamental da Redenção.
Scotus partiu novamente da própria objeção: sim, Cristo é o Redentor perfeito. Ora, a perfeição de sua Redenção exige que seja capaz não apenas de lavar o pecado, mas de preveni-lo. A própria perfeição de sua Redenção requer essa capacidade suprema (uma mãe que consola e lava seu filho que levou um tombo é uma boa mãe; mas a mãe que controla seu filho, para que não leve o tombo é uma mãe melhor ainda). Cristo tinha de preservar Maria do pecado para que nada contaminasse a Encarnação. Deus, segundo uma lei geral inscrita na Escritura e na Tradição, põe a perfeição no princípio de todas as suas obras: criação ou re-criação.
O mérito de Scotus é também ter encontrado a palavra-chave que os pregadores do sesquicentenário precisam esculpir na cabeça. Um dia, o cardeal Maurice Feltin (1883-1975), arcebispo de Paris, pregando na gruta de Lourdes, não lembrava essa palavra-chave, e uma outra palavra aflorou em seus lábios: Maria foi purificada. Se tivesse sido purificada, significaria que tinha contraído o pecado original. Ele percebia muito bem dentro de si que, um século depois da definição de Pio IX, isso não era exato, mas a palavra “preservada” não acorria a sua memória de setuagenário. Ele não se lembrava do vocábulo e corrigia como podia a expressão infeliz, multiplicando os epítetos: uma purificação maravilhosa, a mais bela, a mais radical. Lamentando, corrigia e recorrigia, sem conseguir seu objetivo. No entanto, há três séculos os papas acolheram a solução de Scotus: Alexandre VII (1661) e depois Pio IX (1854) adotaram o termo alcançado por Scotus, preservação.
Na definição dogmática, não se encontra a expressão abstrata “Imaculada Conceição”. Era preciso dizer mais e melhor. Leiamos uma vez mais as palavras essenciais que formulam o dogma da origem imaculada de Maria: “Desde o primeiro instante da concepção, por uma graça e um singular privilégio de Deus onipotente, em previsão dos méritos de Jesus Cristo, Salvador do gênero humano, foi preservada intacta de qualquer mancha de pecado original”.
Papa Pio IX definiu em primeiro lugar a verdade que havia sido a objeção determinante que impedira o dogma por dezenove séculos: Maria é resgatada por Jesus Cristo. Mas, ao mesmo tempo, definiu que sua redenção não é de modo algum purificação, mas, sim, preservação, em previsão dos méritos do Salvador de todos. Esses dois prefixos indicam a exceção preventiva de Jesus para sua mãe e integram à definição a verdade fundamental, professada desde sempre pela fé. Assim, abolia-se, desde a época de Alexandre VII, o decreto do Santo Ofício que inseria no índice todos os autores que dessem a Maria o título de “Imaculada Conceição” e, às vezes, chegava a mandar encarcerá-los, como aconteceu a Hipólito Maracci (1604-1675), em meados do século XVII.
O problema ecumênico
Esse dogma não foi aceito pelos “irmãos separados”. Diversos sínodos ortodoxos o condenaram. É estranho, pois o dogma nos vem deles. Desde os séculos VII e VIII, introduziram a festa da Concepção de Maria e celebravam essa Concepção com a grande abundância de epítetos disponíveis na língua grega: Concepção santa, pura, imaculada…
Foram necessários quatro ou cinco séculos antes que a evidência, vislumbrada por Santo Agostinho, conseguisse repelir a objeção maior que a havia privado de uma fórmula clara no início do século V. Santo Agostinho escrevia que não queria que houvesse pecado pelo meio, quando se tratava de Maria. “Nós não entregamos Maria ao diabo pela condição do nascimento, pois essa mesma condição é resolvida pela graça do renascimento” (Contra Iulianum opus imperfectum IV, 122; Patrologia Latina 45, 417). Agostinho afirmava, portanto, a redenção de Maria, livrava-a do pecado e do diabo, mas sem explicar como (por preservação e previsão). Sua importante declaração continuava ambígua: “maculistas” e “imaculistas” aproveitaram-se disso por séculos.
Por uma estranha reviravolta histórica, do século XI ao século XIX os ortodoxos se revoltaram com essa verdade que eles mesmos nos haviam transmitido, à medida em que nosso Ocidente, no início contrário, se dispunha simetricamente no outro sentido. Ainda hoje a discussão é muitas vezes mais difícil com os ortodoxos do que com os protestantes. Os ortodoxos levantam muitas objeções: Maria se afasta de nós, diminui o seu mérito, etc. Em nome de seus princípios, os protestantes são contrários, sim, ao dogma, mas o diálogo frequentemente é mais fácil, quando se parte de seu próprio princípio, dizendo: é a mais notável ilustração do “somente a graça” (mote de Lutero).
A Revelação bíblica
A objeção comum dos ortodoxos e dos protestantes é que esse dogma (como a Assunção) não é revelado na Bíblia. Nossa resposta está contida na primeira palavra da Anunciação (Lc 1,28): “Alegra-te, cheia de graça” (em grego: kécharitôménê).
É uma palavra muito forte, é o nome de graça de Maria. Expressa a plenitude de amor de Deus por ela. Mas isso fica muito implícito e os santos doutores do século XIII, além de alguns dominicanos do Santo Ofício, até 1854 se mantiveram contrários.
Gastei anos para me dar conta de que essa verdade estava luminosamente inscrita na Revelação, quando se lê a Bíblia segundo a sua progressão, frequentemente mais significativa do que suas afirmações explícitas.
A revelação dessa verdade é indicada pela primeira vez no capítulo 2 do profeta Oséias (portanto, desde o século VIII a.C.). É uma terrível acusação de Yahweh contra seu povo – sua “esposa adúltera” (2,4), “que se prostituiu” (1,2; 2,5; 3,3; cf. cap. 2, 4, 6) – por seu culto aos falsos deuses (aos quais Salomão chegara a construir templos, para uso de suas esposas idólatras). Mas, depois das imprecações por seu amor ferido, Yahweh, Esposo fiel, promete recomeçar tudo do princípio: “Por isso, eis que vou, eu mesmo, seduzi-la, conduzi-la ao deserto [o lugar da Aliança] e falar-lhe ao coração” (2,16). “Eu te desposarei a mim para sempre, eu te desposarei a mim na justiça e no direito […], eu te desposarei a mim na fidelidade” (2,21.22).
Deus, Esposo cheio de paixão por seu povo – a filha de Sião, essa menina perdida que ele havia aco¬lhido quando jazia no próprio sangue, que havia adotado e depois desposado na idade de seu esplendor (Ez 16) -, esquece os pecados do povo, segundo a maravi¬lhosa capacidade de oblívio própria da misericórdia infinita de Deus celebrada na Bíblia.
O Cântico dos Cânticos revela seu sentido, se relido segundo a tradição bíblica, ou seja, identificando o Esposo com Yahweh e a mulher com um povo, uma cidade: “Teu pescoço é a torre de Davi…” (Ct 4,4; cf. 7,5). E a noiva, filha de Sião, diz: “Eu sou muralha [os bastiões de Jerusalém] e meus seios são torres” (8,10 etc.). E, para concluir, Deus diz à sua noiva: “És toda bela, minha amada, e não tens um só defeito” (Ct 4,7; cf. 1,15.16; 4,1; 5,9; capítulo 6).
A prostituição denunciada por Oséias não existe mais no Cântico dos Cânticos: são apenas sonhos (pesadelos da belíssima esposa); é por isso que se repete: “Não desperteis, não acordeis o amor, até que ele o queira” (Ct 2,7; 3,5; 8,4).
Essa afirmação não está apenas implícita, é clara; mas continua a ser virtual, se não se sabe pôr o conjunto dos textos bíblicos em sua progressão de Eva a Maria, última herdeira e realização do povo eleito: esposa de Yahweh.
Onde, quando e como a prostituta pode se tornar noiva sem mancha? Em Maria, mãe do Se-nhor, cheia do amor de Deus: um amor preventivo, gratuito e pleno, significado da palavra grega intraduzível kecharitôménê: palavra forte formada pela raiz cháris (graça), que o anjo logo explica: “Encontraste graça junto de Deus” (Lc 1,30).
Assim, Maria foi levada ao ápice da graça e do amor que lhe permitiu fazer nascer o Salvador na raça e na história humanas, ao ápice do povo de Deus. Não apenas o concebeu e deu à luz como homem, mas, graças à sua adesão perfeita a Deus que se fez seu filho por meio unicamente dela, ela foi também o primeiro membro do Corpo místico que ela mesma criava. Membro fundador da Igreja, era sozinha toda a Igreja pela graça do Espírito Santo (cf. Lc 1,35), que a visita à sua prima Isabel estava por estender ao filho desta, João Batista, e depois ao pai, Zacarias: todos os três cheios de Espírito Santo, segundo Lucas 1,42.67.
“Mais jovem que o pecado”
Maria, assim, não apenas é o único membro fundador da Igreja, mas é o único membro isento de qualquer pecado, pois todos os outros membros são pecadores: “O justo peca sete vezes por dia”, segundo o adágio. A santa Igreja é feita de pecadores, e em cada um deles o amor faz retroceder o pecado com a graça de Deus. A fronteira do pecado atravessa nossos corações. Só Maria não atolou nessa mistura: ela é isenta “de qualquer mancha de pecado”, define claramente Pio IX. Isenta daquele desequilíbrio de desejos que a Tradição cristã chama concupiscência.
Assim, ela é o início da “nova criação” prometida pelos profetas: “Mais jovem que o pecado, mais jovem que a raça da qual nasceu”, dizia poeticamente Bernanos. Maria é “a nova Eva”, dizem os Padres da Igreja.
Há anos exponho essa radiografia da Bíblia, mas, por mais que seja pertinente e esclarecedora, não encontro nenhum eco; a exegese e a teologia muitas vezes são míopes demais. Insistem mais em nos dizer o que a Bíblia hauriu da tradição cultural pagã (e é verdade que hauriu), mas sem fazer ver como a inspiração do Espírito Santo purificou progressivamente, realizou, transcendeu a melhor dessas nobres tradições culturais, das quais se serviu para fazer o mel da Revelação Bíblica.
Ver Maria com os olhos de Deus Já posso compartilhar uma grande surpresa minha: existe um forte conflito entre os cientistas profanos e aqueles que exploram a Revelação divina com o mesmo espírito científico.
Os primeiros buscam sempre penetrar mais a fundo os incríveis e fascinantes mistérios do cosmo, que fazem explodir os conceitos humanos (relatividade; princípio de indeterminação; o mundo infinitesimal, que cria seu espaço sem estar em nenhum espaço que o contenha, etc.). Nós nos maravilhamos com eles, sem entender de maneira adequada esse conjunto vertiginoso do cosmo no qual estamos mergulhados. Os segundos, embebidos do princípio científico segundo o qual tudo deve ser explicado a partir da base e somente a partir da base, tentam reduzir a Revelação bíblica a seus condicionamentos culturais pagãos, sem ver como a Escritura inspirada os transcende progressivamente, não tanto com conceitos racionais quanto, muito mais, com símbolos poéticos, por meio dos quais se realiza a Revelação, tecida mais de símbolos que de abstrações.
Pode-se realmente ser teólogo sem a força de penetração intuitiva e poética da qual era ainda testemunha a grande geração dos poetas, Péguy, Claudel e Bernanos?
Há mais de meio século estudo Deus e a Virgem Maria, sem nunca separá-los nem dissociá-los, e vou de maravilha em maravilha: pois a coerência, a verdade, a luz supra-racional desse mistério supremo, parte integrante da Encarnação e da Redenção, se concentram assim na pequena frase que é a conclusão, a finalidade e a realização plena de toda a Revelação: “Deus é amor”. Nada mais é senão amor, nada criou senão por amor e superabundância.
Quanto a Maria, ela é a primeira no amor, pois é a mais amada por Deus e ao mesmo tempo aquela que mais o amou em troca, à imagem de seu Filho, que recebe tudo do Pai e lhe restitui tudo num eterno e desconcertante reconhecimento.
Assim, essa pequeníssima criatura, essa menininha da cidade e da província mais periférica, mais desprezada, Nazaré da Galiléia (cf. Jo 1,46), esse pequeno animal racional tão inferior aos anjos por inteligência e força natural, é posta acima dos anjos: Rainha dos anjos, a primeira em absoluto das criaturas. Rainha dos anjos, essa menininha! Pois só o amor conta. Ela podia dizer ainda melhor do que Teresa de Lisieux, à entrada da grande consagração: “Serei o Amor”; e podia dizer ainda melhor do que Yvonne-Aimée de Malestroit (mística francesa, 1901-1951), quando chegou ao ápice de sua união mística com Deus: “O meu Amor é a própria essência do infinito” (de tanto que se sentia identificada com o próprio Amor, que é Deus em três Pessoas).
Nessa realização, Maria continuou a ser a mais humilde das criaturas “e a maior, pois é também a menor”, explicava Péguy em suas páginas. Ela dizia já em sua maravilhosa ação de graças: “Deus […] olhou para a humilhação de sua serva. […] O Todo-poderoso fez grandes coisas em meu favor. […] Depôs poderosos de seus tronos, e a humildes exaltou”, todos os humildes, dos quais Maria é a mais transparente evidência. Assim, é a mais bela das criaturas: todos aqueles que a viram ficaram maravilhados. “Tão bela que se gostaria de morrer por revê-la”, dizia Bernadete. Uma outra vidente lhe perguntou: “Como a senhora pode ser tão bela?”. Ela respondeu com duas palavras: “Porque amo”.
Como todas as mães, gostaria que nós fôssemos belos como ela, mais belos, se possível, pelo mesmo Amor: o amor divino, tão diferente do que os homens denominam com essa palavra. Pois “te amo” muitas vezes significa: “Quero ter-te, possuir-te, dominar-te”, como demonstram os violentadores assassinos, a propósito dos quais a imprensa francesa é inesgotável. Mas “te amo”, segundo Deus e segundo a verdade humana, significa: “Quero o teu bem e a tua felicidade, farei tudo para servir-te. Darei a minha vida por ti”. É o que quase todos os pais saber fazer por seus filhos.
Assim é o amor de Deus, que pôs sua imagem mais natural na família. Nada mais é senão dom. As três Pessoas divinas nada mais são senão dom total, umas às outras, sem sombra de egoísmo, de narcisismo, de individualismo.
As Pessoas divinas, essas pessoas supremas, nosso modelo, não são indivíduos, diz Tomás de Aquino; nada mais são senão altruísmo. Suas vidas é seu dom mútuo, que constitui sua plenitude infinita. Nós somos todos chamados a entrar nessa plenitude que é o verdadeiro nome da felicidade. Maria nos arrasta para dentro.
A imagem mais bela do Amor de Deus sobre a terra é o amor das mães por seus filhos, aos quais elas dão a vida como o Pai a dá ao Filho que está eternamente no seio do Pai (cf. Jo 1,18).
Tal como o amor delas nada mais é senão dom, o mesmo se dá com o amor de Maria por Jesus, o mesmo se dá com o amor dos pais que fazem tudo por seus filhos.
Maria gerou corporalmente apenas a Jesus. Todos os outros homens têm uma outra mãe. Somos, portanto, seus filhos adotivos. Isso não significa que nos ame menos. Os pais adotivos que conheço não amam seus filhos adotivos menos do que aqueles que tiveram juntos. É preciso, pelo contrário, dizer que os amam mais, pois as crianças desafortunadas que arrancaram da miséria e da infelicidade são muitas vezes feridas no corpo e na psique. É preciso dar a elas muito mais amor para curar suas feridas. É assim que Maria faz conosco.
À imagem do Pai celeste, que experimenta mais alegria por um pecador que se converte do que por noventa e nove justos que não precisam de conversão (cf. Lc 15,7), ela não nos ama menos do que a seu Filho Jesus, e nós lhe custamos mais amor e mais sofrimentos. Deve amar-nos mais para nos arrancar do pecado, pois nós recalcitramos.
Sua origem imaculada não a afasta de nós, como alguns objetam. Pelo contrário. Pois não se entende o pecado por meio do pecado, mas por meio do amor. Todo egoísmo diminui em nós o amor e põe os pecadores uns contra os outros. Para que Maria seja verdadeira mãe de Deus e mãe dos homens, Deus dilatou seu coração na medida do Seu, sem medidas. Não poderemos compreender adequadamente o esplendor desse amor provado pelas dores de sua compaixão a não ser em Deus mesmo, quando estivermos lá, nós também identificados, na revelação final.
Não poderemos entender o amor vertiginoso de Maria, à prova na compaixão, a não ser com o olhar e o Amor de Deus, além deste mundo.
Autor: René Laurentin (Revista 30 Giorni – Nov/2004)
Tradução: franciscanos.org.br
Relacionado
Descubra mais sobre Blog Salve Maria Imaculada
Assine para receber os posts mais recentes por e-mail.