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Em meados do ano de 1498 ainda nenhuma habitação se abrigava, por muitos quilômetros ao redor, no ponto mais alto de uma serrania da freguesia de Quintela. Apenas alguns pastorinhos de magros e diminutos rebanhos freqüentavam as agrestes paragens; porém, tão violento era o local, que os próprios pastores o evitavam tanto quanto possível, pois só de lobos e raposas eram covil fácil e seguro os duros rochedos graníticos pegando o solitário local.

Fazia exceção, ao temor que o lugar inspirava, uma jovem pastorinha chamada Joana, muda de nascença, que frequentava com insistência as lapas e fraguedos daquele inóspito planalto, onde passava horas e horas a fio sozinha e abandonada de seus companheiros, mas sempre rodeada de seu rebanho de cabras e ovelhas. Estas, apesar de já terem devorado tudo quanto de comestível se encontrava ao redor, não se afastavam da pastorinha, que por sua vez não se arredava de determinada lapa, justamente a de mais difícil acesso, pelo que era evitada por todos os outros pastorinhos de Quintela. Os animais de Joana, no entanto, estavam gordos, como se tivessem diariamente pasto fresco e reconfortante.
Aconteceu, porém, que a mãe de Joana veio a conhecer a predileção da filha pelo recôndito penhasco, a mil metros acima do nível do mar, e não querendo que ela perdesse tempo com o rebanho por aqueles ermos tão mal afamados, ordenou que não se demorasse na lapa e que seguisse com o rebanho por toda a serra.
Obediente como boa filha que era, a muda Joana cumpriu as ordens da mãe, e por isso, na dia seguinte, seus companheiros, com grande espanto, viram-na retirar do seu bornal uma linda imagenzinha de rosto tão formos, que dava gosto vê-la e contemplá-la, pondo-se depois a rezar diante dela, o que fazia todos os dias, da seguinte maneira: com toda a delicadeza tirava a imagem do seu bornal, colocava-a em cima de uma das mais elevadas pedras da serrania e, depois de rodeá-la de flores silvestres, fazia-lhe sua oração, contemplando-a com os olhos arregalados horas e horas seguidas, como se estivesse a conversar com sua querida imagem, o que lhe era impossível, por ser muda de nascimento. O rebanho não a abandonava um só instante; em vez de procurar pasto e alimento, mantinha-se igualmente em muda e admirativa contemplação, como se a melhor forragem fosse seu alimento cotidiano.
Ao cair da tarde, Joana guardava a imagenzinha no seu bornal, com todo o cuidado e carinho, e, seguida do rebanho, voltava para casa, para no dia seguinte recomeçar tarefa idêntica.
Assim se iam passando os dias, até que chegou o inverno com a neve, o frio, a intempérie própria dessa estação, retendo a pastorinha e sua ovelhas no redil de seu lar.
Numa tarde triste e sombria, com o vento uivando pelas desconjuntadas frestas da pouco confortável habitação, lareira acesa para se poder resistir ao frio, Joaninha em seu habitual entretenimento, ajoelhada diante de sua querida imagenzinha, estava tão absorta na oração que não se apercebeu das zangas da mãe, que irritada, furiosa, sem que se soubesse o motivo do seu agastamento toma a imagem e arremessa-a à fogueira que na lareira ardia.
Nesse mesmo instante um duplo milagre se observa, deixando estarrecidos todos os que observavam a inesperada cena: as chamas em rubros lampejos, vacilantes, tremeluzindo, afastam-se da imagem, para poupá-la à sua fúria devastadora, e Joana, a muda Joana, soltando um grito aflitivo, lancinante, exclama aterradoramente: “Ó minha mãe! Que fez a minha mãe?! Quer queimar a Senhora da Lapa?!…”
A mãe, atônita, espavorida, assombrada com o que vê e ouve, mais espavorida se torna ainda, quando ao quere retirar do fogo a santa imagem que inconscientemente tinha profanado, sentiu o braço direito paralisado, tolhido, incapaz de fazer o mais simples movimento. E então, de admiração em admiração, ouve a
filha contar com toda a clareza e nitidez: “Encontrei esta linda imagem no ponto mais alto da serra, escondida no fundo de uma lapa dos maiores penedos que ali se encontram, quase impossível de nele se penetrar, tal a espessura dos silvados, do tojo e do matagal que a escondiam aos olhos profanos. Brilhava no interior da lapa com um estranho fulgor, e foi desde que a retirei de lá a minha companheira inseparável. E deu-me a fala Nossa Senhora da Lapa!”
Veio a saber-se mais tarde que a linda imagem tinha pertencido às beneditinas do convento de Sermilo (Aguiar da Beira), e por elas fora escondida no recôndito daquela lapa, para assim impedirem o sacrilégio de ser destruída pelas hostes do terrível Al-Mançor. No recanto oculto e ignorado daqueles alcantis agrestes e bravios tinha a imagem permanecido mais de 515 anos.
Vejamos agora o que sucedeu à imagem de Nossa Senhora da Lapa depois de retirada do fogo: todos se puseram de joelhos, pedindo perdão a Deus da profanação cometida, e logo depois foram procurar o pároco da freguesia de Quintela, o qual ciente do que se passara, colocou a imagem num altar de sua igreja paroquial.
Novos milagres se operaram: a mãe de Joana recupera a força e o movimento de seu lado paralisado, a pastorinha continua falando, exprimindo com clareza seus pensamentos; e por três vezes a imagem misteriosa e inexplicavelmente, desaparece do seu altar, para de novo ser achada por Joana em sua antiga lapa nos fragueados gigantescos da alcantilada serra que conserva seu nome.
Compreenderam então todos que Nossa Senhora da Lapa queira permanecer no lugar onde tinha sido encontrada, e por isso foi ali construída sobre o rochedo modesta capelinha que ficou sendo propriedade da freguesia de Quintela.

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