A honra que a Igreja sempre deu à Mãe de Deus foi muito especial, partindo dos personagens presentes dentro dos evangelhos até aos grandes autores que olharam com atenção para ela no decorrer dos séculos.
Santo Agostinho de Hipona em um dos seus sermões na solenidade do Natal, procurou mostrar a dignidade desta Mulher e a complexidade em que ela estava envolvida, chegando à conclusão de que não podermos excluí-la da centralidade do Evangelho, por mais que alguns queiram fazer isto; vejamos: “Aquele que, nascido do Pai, criou todos os séculos, consagrou este dia, nascido de uma mãe, nesta terra. Naquele nascimento (do alto) não pode ter mãe; neste, não buscou pai humano. Em poucas palavras: Cristo nasceu de um pai e de uma mãe; e ao mesmo tempo, sem pai e sem mãe. Enquanto Deus, nasceu do Pai; enquanto homem, de mãe. Enquanto Deus, sem mãe, enquanto homem, sem pai”.¹ Aqui encontramos o motivo pelo qual a Igreja honra a genitora na carne de Cristo, mesmo se a ela não houvesse uma profecia sobre a louvação que lhe seria tributada, a Comunidade cristã assim o faria: “Todas as gerações me chamarão de bem-aventurada porque o Todo-Poderoso fez em mim Maravilhas” (Lc 1, 48). Outro dado importante que não podemos esquecer é a união hipostática de Cristo², acreditado e difundido também por Santo Agostinho, tirando aqui qualquer sombra de dúvida sobre o assunto.
A verdadeira devoção à Santíssima Virgem consiste em dedicar-se e entregar-se ao Reino de Deus de forma total e sem descanso, tendo sempre presente em todas as suas ações, o exemplo de vida e fé dela; assim agradaremos plenamente ao Senhor que “a escolheu, entre todas preferida”.³
Repito, a Virgem Maria, mesmo que alguns não queiram, ocupa um lugar privilegiado na Criação, começando na sua Concepção, terminando na Assunção, não por causa de seus méritos, pois mérito nenhum a humanidade dela teria, mas pelos méritos de Jesus Cristo, o Puro, o Santo, o Imaculado que não deveria nascer de uma pessoa infectada com o germe do pecado.
A eleição de Nossa Senhora antes da fundação dos tempos está atestada na Sagrada Escritura – “Antes da fundação do mundo, fomos eleitos nele” (Ef 1, 4-12): Por Jesus ser quem é, Deus o Pai pôde eleger para si, Maria para ser mãe de seu Filho e também um a povo antes mesmo da criação. Com base nos méritos de Cristo existentes na eternidade, a Trindade glorificará a si mesma pela redenção de Maria, já na sua conceição ou nascimento.
O próprio evangelista João, inspirado por Deus afirmou em sua carta: “Deus é luz, nele não há trevas” (Jo 1, 1). A luz é uma metáfora comum na Sagrada Escritura. Em Provérbios 4,18simboliza a justiça como a “luz da aurora”; São Paulo aos Filipenses 2,15 compara os filhos de Deus como a luz, pois devem ser “puros e irrepreensíveis” como as estrelas brilhantes no universo.
Já Nosso Senhor usou a luz como uma imagem de boas obras: “Assim brilhe a luz de vocês diante dos homens, para que vejam as suas boas obras e glorifiquem ao Pai que está nos céus” (cf. Mt 5,16). O fato de que Deus é luz estabelece um contraste natural com a escuridão do pecado, sendo assim, não poderia ser gerado na carne corrompida pelas trevas. Se a luz é uma metáfora para a justiça e bondade, então a escuridão significa o mal e o pecado. A luz faz parte da essência de Deus, assim como o amor (1Jo 4, 8). Eis a mensagem:Deus é completamente, absolutamente e incondicionalmente Santo, sem qualquer mistura com o pecado, qualquer mancha de iniquidade ou qualquer indício de injustiça. Eis a grandiosidade de Deus em Maria! Aqui, todos os que têm fé no Deus dos cristãos se curvam diante deste fato extraordinário.
A importância do culto mariano não nasce de uma vontade humana, é parte da herança deixada por Nosso Senhor Jesus Cristo. Para os cristãos, o ponto principal de referência é Jesus e sua palavra, pois fazem parte do mistério que não é teorético ou palavra humana, mas é uma realidade que supera toda a Igreja.
Os irmãos separados fazem uma acusação sem fundamento, afirmando que “o culto mariano se baseia em uma ‘tradição’ que não parte dos Evangelhos”, porém, a Tradição por meio da Sagrada Escritura nos revela que a pessoa de Maria é inserida por escolha e vontade de Deus como realidade, na estrutura e na harmonia da fé na história da salvação dentro do Evangelho.
Não é porque Paulo não fala de Maria diretamente, ele como doutor da fé, que Ela deve ser esquecida por nós hoje. No entanto, Paulo faz referência a Maria em um texto que fundamenta todo o desenvolvimento do pensamento sobre Nossa Senhora e a Mariologia na Igreja (Gal 4, 4-6). É um texto que nos faz entrar dentro da profundidade do mistério de Deus, ainda que de uma forma meio contida. Entrar no mistério significa que “ser discípulo da Palavra”, não nos apossamos ou possuímos o Mistério, mas entramos na realidade enquanto crente, recebendo aquilo que Deus quer nos dar por meio desta mesma palavra. Estas questões são bem simples, mas ao longo do tempo, em muitos lugares perdemos esta sensibilidade dentro do campo da fé. Um exemplo podemos trazer aqui está no próprio culto cristão, nele celebramos o mistério da nossa fé! Em determinadas comunidades, infelizmente esta visão de culto está eclipsada, sendo ele transformado mais em um encontro de “desconhecidos” em busca de ações divinas que satisfaçam as suas carências afetivas, do que um encontro com o Mistério. Isto fere a Palavra porque a modificamos, obrigando que nossas palavras humanas, cubram as palavras e as ações de Deus dentro da liturgia.
A “plenitude do tempo”
À luz de Gálatas, já que estamos falando de São Paulo, também percebemos que esta “plenitude dos tempos” em que Deus veio, está quase esquecida ou perdida nas catequeses atuais. Isto causa um grande mal à fé cristã e impede o povo de Deus de usufruir das riquezas do Depósito da Fé da Igreja, porque os fiéis se perdem na história que passa a não ter sentido. Cria-se uma infantilização (1Cor 13, 11) da Religião que se desenvolve a partir de uma rejeição à Doutrina oficial da Igreja, chegando até ter repulsa de seus ensinamentos, principalmente no campo da Moral e da Ética. Em outras palavras, a comunidade dos irmãos transforma-se em uma reunião de pessoas que não veem sentido de pautar suas vidas a partir daquele Senhor que dá a vida e que veio (Jo 1, 14), e está presente no tempo e na história (Ap 22, 13). Aqui, Maria, Mãe de nosso Senhor, a perfeita discípula que peregrina ao longo do tempo, encontrada “cheia de graça”(4) na eternidade de Deus, chama a atenção dos homens para que não se percam no caminho de volta até o Senhor.
“Plenitude dos tempos” ao lado da “plena de graça”, eis no interior do mistério de Cristo ambas completudes, fundando aquilo que é hoje o culto a Maria. Em outras palavras, a partir daquilo que Deus oferece do mistério primordial, temos Maria no meio deste Mistério. Neste sentido, qualquer pessoa dentro do Cristianismo, seja católico ou não, deve aceitar esta visão ou realidade sobre aquilo que Deus nos deixa como verdade contida na sua Palavra. Nela está Maria ocupando o lugar de colaboradora eminente. Se temos fidelidade e percebemos o dom de Deus, nele encontramos a Nazarena.
Hoje concluímos que o culto a Nossa Senhora nos foi dado por Nosso Senhor Jesus Cristoquando entregou sob o cuidado de João sua mãe: “Eis ai tua mãe” (Jo 19, 26-27)! Não foi um invencionismo partido do povo, mas da própria vontade de Deus. Nestas últimas palavras de Jesus na Cruz vemos a teologia da filiação. Ele se volta ao Pai para entregar o seu Espírito e ao mirar com os olhos da carne à João, entrega a sua Mãe. Quer dizer, se entrega completamente: corpo na cruz, Espírito ao Pai e sua mãe aos irmãos. Ali reconheceram que “ele de fato era o Filho de Deus” (Mt 27, 54).
Uma vez reconhecendo Jesus como Filho, obrigatoriamente deve-se reconhecer sua Mãe! Aqui não só temos um vocábulo que nasce do afeto, mas algo nascente a partir das palavras de Jesus. Pedido de aceitação que a própria Maria e a Igreja obedeceram, abrindo seus corações para que ambas acolhessem uma a outra. Temos um mistério neste episódio da cruz! Por que Jesus não entregou sua mãe às mulheres ali presentes, nem a própria Maria Madalena, por ser mulher também? A resposta que temos está na própria passagem da Sagrada Escritura: Ele a “entregou ao discípulo a quem amava” (Jo 19, 26). Até nesta hora, o laço da afetividade esteve presente. Jesus tinha certeza: o discípulo amado a cuidaria muito bem porque ele “muito amava” o Mestre e demonstrou este amor permanecendo junto à Cruz.
No episódio do Calvário o Crucificado estabelece novas relações de amor entre Maria e os cristãos. Aqui está selada uma “Nova e Eterna Aliança”, tendo presente uma “Mulher”, fazendo cumprir a primeira profecia proclamada pelo próprio Deus no Antigo Testamento: “Porei inimizade entre ti e a Mulher, entre a tua descendência e o seu Descendente. Este te ferirá a cabeça, e tu Lhe ferirás o calcanhar”. O relato do Gênesis aponta para o papel tríplice de Jesus Cristo no que tange à nossa salvação.
(1) Profetiza a encarnação do Senhor no seio da Virgem Maria, “Mulher” que não faria pacto com o pecado (preservada do pecado);
(2) Note que a Semente é de uma mulher, não de um homem. A cultura judaica acreditava que só os homens tinham semente. A imagem é uma clara alusão ao nascimento virginal de Jesus;
(3) A via de Gênesis revela o sofrimento de Jesus Cristo e Sua morte na cruz. Satanás “feriria” o “calcanhar”;
(4) Finalmente, a promessa proclama a vitória da “Descendência da Mulher” sobre a serpente. Cristo “ferirá” ou esmagará a cabeça da serpente. A estratégia do demônio de provocar a morte de Jesus surtiu efeito contrário! A cruz constituiu um golpe de morte sobre a cabeça do inimigo enganador – sua destruição tornou-se uma certeza! Bendito seja Deus pela presença de Maria ao pé da cruz! Isto reporta-nos à passagem do Paraíso: uma mulher, um homem, uma árvore e uma serpente enganadora. Os Padres da Igreja já desvendaram o significado de tudo isto: Adão=Cristo, Eva=Maria, árvore=cruz, serpente=o mal. Jesus novo Adão sem o pecado, Maria livre do pecado pelos méritos de Cristo, a árvore da vida substituída pelo dom precioso da Cruz e o mal derrotado pela força e o poder de Deus.
Este foi um artigo extenso, mas procuramos mostrar o quanto a Mariologia pode ajudar na nossa compreensão no conhecimento de Deus e de sua relação com a humanidade.
Côn. José Wilson Fabrício da Silva, crl
FONTE:
Academia Marial – A12
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